sexta-feira, 27 de junho de 2008

Alguns devaneios: contracapa de Pequenos Poemas em Prosa

(Foto de Túlio Pinto dos meus trabalhos da Série Devaneios, exposição da Subterrânea na ESPM - PortoAlegre 2008)

Quem dentre nós não sonhou, nos seus dias de ambição, com o milagre de uma prosa poética, musical, sem ritmo e sem rima, flexível e desencontrada o bastante para adaptar-se aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência? É sobretudo da freqüentação das cidades enormes, é do cruzamento de suas inumeráves relações que nasce este ideal obsecante.
Charles Baudelaire

quinta-feira, 26 de junho de 2008

O Desejo de Pintar - Baudelaire

Infeliz pode ser o homem, mas feliz o artista que o desejo dilacera!
Estou louco por pintar aquela que apareceu tão raras vezes e tão depressa fugiu, como algo belo e fugaz fica atrás do viajante arrastado na noite. Como já faz tempo que ela desapareceu!
Ela é bela, e mais que bela; ela é surpreendente. Nela o negro excede: e tudo o que ela inspira é noturno e profundo. Seus olhos são dois antros em que cintila vagamente o mistério, e seu olhar ilumina como o raio: é uma explosão dentro das trevas.
Eu a compararia a um sol negro, se pudéssemos conceber um astro negro que vertesse a luz e a felicidade. Mas ela lembra mais facilmente a lua, que sem dúvida a marcou com sua temível influência; não aquela lua branca dos idílios, que se assemelha a uma noiva fria, mas a lua sinistra e embriagante, suspensa ao fundo de uma noite tempestuosa e transtornada pelas névoas que correm; não aquela lua mansa e discreta a visitar o sono dos homens puros, mas a lua arrancada do céu, vencida e revoltada, que as Feiticeiras tessalienses obrigam duramente a dançar sobre a relva apavorada!
Na sua fronte pequena residem a vontade tenaz e o amor pela presa. No entanto, na base deste rosto inquietante, em que narinas móveis aspiram o desconhecido e o impossível, rebenta, com graça indizível, o riso de uma grande boca, vermelha e branca, e deliciosa, que faz sonhar com o milagre de uma esplêndida flor desabrochada num terreno vulcânico.
Há mulheres que inspiram o desejo de vencê-las e desfrutá-las; mas esta dá vontade de morrer lentamente sob seu olhar.


Baudelaire, Charles Pierre: pequenos poemas em prosa. Florianópolis: ed. da UFSC, 1996. Trad.: Dorothée de
Bruchard, p. 189-190

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Retornos

Procurando uns textos hoje, encontrei este fragmento de fundo de armário: uma transcrição da fala do personagem Jesse James, numa cena do filme Antes do Pôr-do-Sol. Caiu como uma luva!

A filha dele de 5 anos sobe na mesa.
Ele sabe que ela deve descer,
ou pode se machucar.
Mas ela está com um vestido
de verão dançando uma música.
Ele olha pra ela, e, de repente,
volta a ter 16 anos.

E sua namorada do colegial
está o deixando em casa.
Eles acabam de perder
a virgindade, ela o ama...
E a mesma canção
está tocando no rádio do carro.
Ela sobe no capô do carro
e começa a dançar.
Ele fica preocupado com ela.
Ela é linda, tem a mesma expressão
facial que a filha dele.
Talvez por isso goste dela.
Sabe que não está se lembrando daquilo.
Ele está lá, vivendo ambos os momentos.

Por um instante,
a vida dele se desdobra.
Fica óbvio pra ele
que o tempo é uma mentira.
Tudo está acontecendo
ao mesmo tempo.
Um momento contém outro
que contém outro
Tudo acontece simultaneamente.
Enfim, a idéia é essa.