quinta-feira, 17 de julho de 2008

Salva pelas reminiscências de um coração venoso periférico

As mãos deslisam sobre o volante, engatam marchas e movem o veículo. Tudo é transitório. As imagens se borram enquanto o olho (des)atento escorre pela cidade. No sinal vermelho o corpo pára. O olhar fixa-se na panturrilha. A velocidade do motoqueiro faz tudo apagar-se novamente. Prédios imensos alocam-se na retina que percorre as estruturas em construção. Céus! A panturrilha! Ela está imóvel no sinal. Sim, o sinal está vermelho. Pés chutam o freio com força, antecipando a parada brusca. As rodas travam, o carro deslisa até parar no sinal. Aliviada penso: salve a panturrilha, este coração venoso periférico que move o mundo! Intacta, a outra continuava lá, contraindo-se livremente a pulsar pelas ruas da cidade.

terça-feira, 8 de julho de 2008

Ainda sobre ambigüidade - Relação entre obra e contexto ou a raiz da piada

Excerto da teoria literária de Empson. Fonte: E-Dicionário de Termos Literários
http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/A/ambiguidade.htm

Empson publica Seven Types of Ambiguity (1930) aos 24 anos, e adopta um estilo de análise textual que recorre às leituras cerradas (close readings). O principal resultado da investigação de Empson foi o de considerar que a ambiguidade era afinal a primeira virtude da poesia, ao contrário do que até aí se supunha. A ambiguidade é então a origem da eficácia poética. Os sete tipos apresentados são:
1) A função multidireccional de um termo ou estrutura gramatical;
2) A fusão de dois ou mais sentidos num só;
3) A paronomásia, que determina que dois sentidos aparentemente desconexos ocorram simultaneamente;
4) A não concordância de dois ou mais sentidos que se combinam para tornar claro o estado de espírito do autor;
5) A descoberta que o autor faz das suas ideias no acto da escrita, ou quando não tem consciência imediata dessas ideias;
6) A produção de enunciados contraditórios ou irrelevantes que obrigam o leitor a inventar enunciados próprios susceptíveis de serem conflituosos entre si;
7) A contradição completa de um enunciado, os dois valores da ambiguidade, que marcam uma divisão na própria mente do autor.

Enquanto o New Criticism separava o texto do contexto social, Empson insistiu em tratar a poesia como uma espécie de linguagem "comum", capaz de ser racionalmente parafraseada - tese já defendida por Wordsworth no prefácio à 2ª ed das Lyricall Ballads. Empson é um intencionalista puro e confesso, que apenas se interessa pelo sentido ditado pelo autor. Longe de existir como um objecto hermeticamente fechado entre si, a obra literária, para Empson, é aberta: a compreensão da obra envolve mais a compreensão dos contextos gerais, nos quais as palavras são usadas socialmente, do que a identificação dos padrões de coerência verbal interna.

segunda-feira, 7 de julho de 2008

Qual será a verdadeira? - Baudelaire

Conheci uma certa Bénédicta, que enchia a atmosfera de ideal, e cujos olhos espalhavam o desejo da grandeza, da beleza, da glória e de tudo o que faz crer na imortalidade.

Mas esta moça milagrosa era bela em demasia para viver por longo tempo; assim, morreu poucos dias depois de eu tê-la conhecido, e fui eu mesmo quem a enterrou, num dia em que a primavera agitava seu incensório até dentro dos cemitérios. Fui eu quem a enterrou, bem encerrada num esquife de madeira perfumada e incorruptível como os baús da Índia.

E enquanto meus olhos permaneciam fixados no lugar onde estava enterrado o meu tesouro, avistei subitamente uma pessoinha que se parecia singularmente com a defunta e que, espezinhando a terra fresca com uma violência estranha e histérica, dizia, rindo às gargalhadas: 'Sou eu, a verdadeira Bénédicta! Sou eu, uma bela canalha! E como castigo por sua loucura e cegueira, você me amará assim como sou!"

Mas eu furioso respondi: "Não! Não! Não!" E para melhor acentuar minha recusa, espezinhei tão violentamente a terra que minha perna afundou até joelho na sepultura recente e, como um lobo preso na armadilha, estou atado, quem sabe para sempre, à fossa do ideal.

Baudelaire, Charles Pierre: pequenos poemas em prosa. Florianópolis: ed. da UFSC, 1996. Trad.: Dorothée de
Bruchard, p. 197


Manet, "Na Estufa"

quinta-feira, 3 de julho de 2008

Onde as fronteiras se borram

Uma criança. Bela ou sedutora? Agelical ou demoníaca?
Ela está imóvel no tempo, absorta em pensamentos.
As velas queimam sobre a torta apetitosa,
à espera do sopro voraz, de quem completa 5 anos de vida.
Foi entorpecida por esta atmosfera que vim a comprar o livro.



Ambigüidades

O olhar solto em pensamento flutuante
deixa-se levar pela névoa
a confundir apetite e indiferença.



"Ao deserto são conduzidos aqueles que são tocados pelas chamas do desejo,
deserto que trazem dentro de si mesmos."
(
DUMOULIÉ, Camille. O desejo. Ed. Vozes: Rio de janeiro, 2005.)

quarta-feira, 2 de julho de 2008

A Corda - de Baudelaire para Edouard Manet


"As ilusões, - me dizia meu amigo, - talvez sejam tantas quanto as relações dos homens entre si, ou dos homens com as coisas. E quando a ilusão desaparece, ou seja, quando enxergamos o ser ou o fato tal como existe fora de nós, experimentamos um sentimento estranho, complicado em parte pela falta do fantasma desaparecido, em parte pela surpresa agradável diante da novidade, diante do fato real. Se existe um fenômeno evidente, trivial, sempre igual, e de natureza tal que é impossível se enganar, é o amor materno. É tão difícil supor uma mãe sem amor materno quanto uma luz sem calor; acaso não será perfeitamente legítimo atribuir ao amor materno todas as ações e palavras de uma mãe, em relação ao seu filho? E no entanto, ouça esta pequena história em que fui singularmente mistificado pela ilusão mais natural."

"Minha profissão de pintor me leva a olhar atentamente os rostos, as fisionomias que se oferecem em meu caminho, e você sabe que gozo nos traz esta faculdade que torna aos nossos olhos a vida mais viva e mais significativa que para os outros homens. No bairro afastado em que moro, e em que vastos espaços gramados ainda separam prédios, fre1üentemente observei um menino cuja fisionomia ardente e marota, mais do que todas as outras, me seduziu a princípio. Ele posou mais de uma vez para mim, e eu o transformei ora em pequeno cigano, ora em anjo, ora em Amor mitológico. Eu o fiz usar o violino do andarilho, a Coroa de Espinhos e os Pregos da Paixão e a Tocha de Eros. Enfim, experimentei em toda a graça deste garoto um prazer tão vivo que roguei um dia a seus pais, gente pobre, que consentissem em me cedê-lo, prometendo vesti-lo bem, dar-lhe algum dinheiro e não impor-lhe outra tarefa que não a de limpar meus pincéis e fazer minhas compras. O menino, depois de limpo, tornou-se encantador, e a vida que levava comigo lhe parecia um paraíso comparada àquela vivida no casebre paterno. Apenas devo dizer que o homenzinho por vezes me espantou com singulares crises de tristeza precoce, e que logo manifestou um gosto imoderado pelo açúcar e pelos licores; de modo que um dia em que constatei que apesar de minhas inúmeras advertências ele havia cometido um novo furto desta espécie, ameacei mandá-lo de volta a seus pais. Em seguida saí, e meus negócios me retiveram bastante tempo fora de casa."



"Qual não foi meu horror e meu espanto quando, chegando em casa, o primeiro objeto que atraiu meu olhar foi meu homenzinho, o maroto companheiro de minha vida, enforcado na porta deste armário! Seus pés quase encostavam no assoalho; uma cadeira, que ele sem dúvida empurrara com os pés, estava derrubada a seu lado; sua cabeça estava convulsivamente inclinada sobre um dos seus ombros, seu rosto, entumescido e seus olhos, arregalados com uma fixidez assustadora, primeiro me causaram a ilusão da vida. Desenforcá-lo não era uma tarefa tão fácil quanto você poderia pensar. Ele já estava bastante rijo, e eu sentia uma repugnância inexplicável em deixá-lo bruscamente cair no solo. Era preciso sustê-lo por inteiro com um dos braços e, com a mão do outro braço, cortar a corda. Mas feito isto, não estava tudo pronto; o monstrinho tinha usado um cordão bem fino que tinha penetrado profundamente nas carnes, e era preciso agora com uma tesoura fina, procurar a corda por entre duas dobras de inchação para desembaraçar seu pescoço."

"Omiti de lhe contar que eu tinha vivamente chamado por socorro; mas todos os vizinhos tinham se recusado a vir me ajudar, fiéis neste sentido aos hábitos do homem civilizado, que nunca quer, não sei porquê, se envolver em histórias de enforcado. Enfim veio um médico que declarou que a criança estava morta desde várias horas. Quando, mais tarde, tivemos de despi-la para o sepultamento, a rigidez cadavérica era tal que, desistindo de flexionar seus membros, tivemos de lacerar e cortar suas roupas para tirá-las."

"O comissário a quem tive, naturalmente, que declarar o acidente, me olhou atravessado e disse: 'Isto tudo é meio suspeito', movido, sem dúvida, por um desejo inveterado e por um hábito profissional de assustar, por vias das dúvidas, tanto os inocentes quanto os culpados."

"Faltava cumprir uma tarefa suprema, a qual me causava, só de pensar, uma angústia terrível; era preciso avisar os pais. Meus pés se negavam a me levar. Tive, enfim, esta coragem. Mas, para meu grande espanto, a mãe permaneceu impassível, nenhuma lágrima pingou no canto de seu olho. Atribuí esta estranheza ao próprio horror que devia estar sentindo e lembrei da máxima conhecida: 'As dores mais terríveis são as dores mudas'. Quanto ao pai, contentou-se em dizer, de um jeito meio entorpecido, meio pensativo: 'Afinal, talvez fosse melhor assim, ele, de qualquer forma, teria acabado mal!'."

"Entretanto o corpo estava estendido em meu sofá, e assistido por uma empregada eu tratava dos últimos preparativos, quando a mãe entrou em meu ateliê. Ela queria, dizia, ver o cadáver de seu filho. Eu não podia, na verdade, impedi-la de embriagar-se com sua desgraça e negar-lhe supremo e sombrio consolo. Em seguida ela rogou-me que lhe mostrasse o local em que seu menino tinha se enforcado. 'Oh! não! senhora, - respondi, - isto lhe faria mal'. E, ao voltar involuntariamente meus olhos para o armário funesto, percebi, com um nojo mesclado de horror e raiva, que o prego tinha ficado cravado na madeira, com um comprido pedaço de corda ainda pendurado. Adiantei-me vivamente para arrancar estes últimos vestígios da desgraça, e quando eu ia jogá-los fora pela janela aberta, a pobre mulher agarrou meu braço e disse com voz irresistível: 'Oh! senhor! me deixe isto! eu lhe rogo! eu lhe suplico!' Seu desespero, parecia-me, decerto a perturbara tanto que ela agora se tomava de ternura pelo que havia servido de instrumento para morte de seu filho, e queria guardá-lo como a uma horrível e cara relíquia. - E ela apoderou-se do prego e do cordão."


"Enfim! enfim! tudo estava cumprido. Só me restava voltar ao trabalho, ainda mais vivamente do que de costume, para expulsar pouco a pouco o pequeno cadáver que assombrava as dobras do meu cérebro e cujo fantasma me cansava com com seus grandes olhos fixos. Mas no dia seguinte recebi um pacote de cartas: umas dos inquilinos do meu prédio, algumas outras dos prédios vizinhos; uma do primeiro andar, mas em estilo semibrincalhão, como que tentando disfarçar pesadamente atrevidas e sem ortografia, mas todas tendendo ao mesmo objetivo, ou seja, obter de mim um pedaço da funesta e beatífica corda."

"Entre os signatários havia, devo dizê-lo mais mulheres do que homens, mas nem todos, acredite bem, pertenciam à classe ínfima e vulgar. Guardei aquelas cartas."

"E então, de súbito, uma luz se fez em meu cérebro, e compreendi por que a mãe fazia tanta questão de me arrancar o cordão e através de que comércio tencionava consolar-se."


Baudelaire, Charles Pierre: pequenos poemas em prosa. Florianópolis: ed. da UFSC, 1996. Trad.: Dorothée de
Bruchard, p. 161-67

terça-feira, 1 de julho de 2008

O mundo cabe em um beco, onde o devaneio é a realidade


Gritos estridentes me despertam numa manhã seca e ensolarada, depois de uma semana inteira de nuvens e umidade gelada. Tento entender que voz é aquela que insiste em explodir enfurecida: "Sai fora daqui, deixa as minhas crianças. Sai daqui desgraçado!". Aproximo-me da sacada e lá está ela no beco, sem megafone. Sua voz ecoa progressivamente por entre os vãos dos prédios vizinhos. Ela está só. Uma mulherzinha gorda, vestida de marinho, saiote prolongado, blazer e bolsa combinando. Os cabelos longos e amarrados identificam-na como crente. Aquela senhora de peitos fartos e movimentação engraçada está de braços abertos e aos berros, a espantar um certo senhor maligno, que parece a perseguir junto às crianças. "Sai fora daqui, desgraçado, pensa que a rua é tua? A rua é pública, eu não vou sair daqui!"

Outras mulheres, como boas donas-de-casa, continuam a passar calmamente com suas sacolas de compras ao lado da mulher enfurecida. Ninguém a vê. As histórias se cruzam, mas isso é imperceptível desde que se entre no beco. Alguma magia envolve os seus passantes. Após adentrar nele, todos tornam-se igualmente indivíduos, apenas isso. Corpos minimamente afastados, mentes infinitamente distantes. A mulherzinha gorda, por sua vez, não vê nenhuma outra mulher. Ela continua a apontar com firmeza e ódio para o senhor invisível, como uma boa mãe a proteger suas crianças.

Um homem de movimentação peculiar ingressa no beco agora vazio. Ele caminha com intervalos constantes, já que apresenta espasmos que o impossibilitam de seguir continuamente. O ritmo descompassado dá forma a uma caminha fragmentada e angustiante, semelhante aos berros estridentes daquela mulherzinha. Eles não se vêem. No meio do caminho, o homem pára voluntariamente. Ele gira em direção ao muro esquerdo que cerca o beco e ali fixa um olhar estranho . Virado para a parede, depara-se com um poste e lê a mensagem de um cartaz colado. Instantes depois, está a caminhar rumo à saída do beco. Dois passos. Um giro de cabeça. Mais três passos. Um giro de cabeça. De pescoço. E de braços. Mais quatro, cinco, seis passos. Ele já está fora do beco.

"Sai fora daqui demônio! Você não vai me pegar não. Eu sei que você está aí."
A senhora de marinho volta a gritar. Seu corpo rígido e frenético está lado a lado com o de um velhinho de bengala que arrasta-se lentamente. Uma das mãos do senhor apóia as costas, enquanto a outra segura firme a bengala. A mulher só tem olhos para o senhor invisível. O velhinho, por sua vez, não tira os olhos da bengala, caminhando com cautela.

Algumas pessoas saem de seus apartamentos e observam a cena da sacada. Uma jovem não se contém e grita enfurecida: "Cala a boca! ... Cala a boca!" A mulherzinha gorda então responde, em tom agudo e firme, já fora do beco, olhando em direção oposta à da moça: "Eles não sabem do que eu sei. Acham que são donos da rua? Pensam que podem mandar em mim? A rua é pública. Eu vejo você. Não estão vendo (apontando para o senhor invisível)? Fora daqui desgraçado! Fora daqui, deixa as minhas crianças!"

Pouco a pouco a voz estridente some e os vizinhos recolhem-se em seus apartamentos. O espetáculo chega ao fim. Aplaudo a cena. É possível voltar ao sonho?