quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Ensaios - texto ligeiramente alterado desde a primeira versão de 2005.


De certo, naqueles dias nublados, tudo parecia um palco. O público inerte nem percebia quando a atmosfera era tomada por ares irreais, suas preocupações eram de outra ordem. Eles olhavam muito para o relógio e não percebiam que naquele sorriso desenfreado da atriz principal escondiam-se,além de angústias internas, alguns mistérios. Dia após dia, a peça não mudava, embora o riso da protagonista, ao longo do tempo, tivesse se tornado mais seco. Era surpreendente como, depois de anos, as cenas de riso ainda a levavam rumo ao gozo pleno. Ali ela não atuava, apenas flutuava dizendo a si mesma: “Que plenitude!”. Mas, no intervalo da peça, acabava percebendo o palco e, com as pernas pesadas e atadas, avistava o público. Lançando então um olhar distante cuja habilidade era transformar toda matéria em névoa, ela brincava de transfigurar os rostos em borrões, deixando a luz escapar-lhe por inteiro e preenchendo o espaço com cores mais vivas ou mais mortas, dependendo de seu estado de espírito. A brincadeira continuava até que se sentisse totalmente perdida. Às vezes, por medo, o jogo acabava rápido.

A peça, no entanto, seguia sem novidades. Tudo continuava meticulosamente igual desde o ponto em que ela a havia retomado. Cena após cena, a atriz fixava-se na imobilidade das coisas: às vezes eram as pequenas frestas entre as tábuas do palco, outras vezes, a poltrona vazia, o padrão da textura no tecido da cortina, ou então, os gestos repetitivos das mãos de um colega. Enquanto a cena seguia, entre um verso e outro, ela costumava perceber certos vãos no tempo. Mas como era possível viver em tal descompasso? Por vezes ela pensava: “Vou arrancar de vez esta máscara e saltar nas lacunas deste palco insano. Afinal, o que eu teria a perder?”.

E um dia a atriz de fato tentou. Ela chegou à beira do abismo para saltar e, ao olhar para trás com um canto de olho desconfiado, acenou em despedida para os colegas de palco. Em seguida, respirou fundo, ergueu os braços bem altos e, com o peito estufado de ar, sentiu o vestido apertar e enrijecer o corpo todo, tal como uma armadura. Ela estava no limite. Esperou mais cinco segundos e desistiu. Atribuiu a desistência ao chamado de um colega de palco, que, com sua voz magnética, exigia-lhe uma resposta. Ainda que estivesse sendo sugada para um diálogo previsível, ela insistia em alimentar a esperança de que as vibrações do som lhe revelassem algo novo. As surpresas não vieram. No entanto, ao girar o corpo dando as costas ao abismo, sentiu a meia-calça apertada descer perna abaixo. Num único contra-golpe ela puxou a meia de volta, ainda que não pudesse evitar que ela se rompesse.

A verdade é que ela quase escapara dali, daquele lugar que ela odiava e, ao mesmo tempo, amava, um lugar deserto que a dominava, fazendo-a caminhar rumo ao sem fim enquanto ela sonhava manipular a si mesma como títere num outro deserto em miniatura.


Um dia, enquanto ela atuava, o palco ruiu.

Envolta pelo eco de uma gargalhada triunfante, ela sentia o alívio trazido pelo cheiro úmido da chuva. Quanto tempo se passara? Ela estava em sua casa agora, no banheiro, a ouvir o som trazido pela ducha e a limpar repetidamente o espelho recoberto de um vapor úmido que engolia a sua silhueta aos poucos. Ela apenas brincava, desejando inverter as regras de seu antigo jogo, a transformar a névoa em matéria, num esconde-esconde com a própria imagem no espelho. E assim deliciava-se ao tocar, com a ponta dos dedos, aquele rosto morno e aparentemente fugaz, a sentir a vida breve em suas mãos.

Sobre Onetti e o poder da fantasia

"Para mim, os fatos nus e crus não significam nada. O que importa é o que contêm ou o que acarretam; e depois verificar o que há por trás disso e por trás disso de novo até o fundo definitivo que nunca poderemos tocar", diz o narrador do conto Matías, o Telegrafista.

Hoje fui presenteada com o conto "Um sonho realizado", do escritor uruguaio Juan Carlos Onetti (1909-1994). Em uma atmosfera onírica, o desafio de representar um sonho banal de uma estranha mulher é vivido por dois amigos que se vêem herdeiros da síntese de uma vida. E este último ritual, em um leito de morte disfarçado de arena, romperá as barreiras entre viver e narrar.