1h30 da madrugada, o céu soluçando luz, prepara-se para a tempestade.
Sedenta, observo a noite pela janela do meu apartamento.
Em seguida, entro na cozinha pra tomar água.
Ao levantar o copo, sou invadida por um odor forte. Ele exala da minha mão direita. A quem eu a teria estendido?
Num só golpe, o cheiro sobe até a cabeça. Estou preenchida dele. O odor é franco, oco e cortante.
Feito bolha sinto-me inflar enquanto a pele estica. Ocupo toda a cozinha, sentindo a pressão das paredes.
Memórias vêm em estalos e lançam-me para outros lugares. Todos eles imensos, velhos, pálidos e quase imóveis. Neles os indivíduos não se cruzam, seus corpos desnudos revelam o peso da gravidade, seus olhares se perdem e as vozes desencontradas apenas ecoam. O único ponto de contato entre nós é o cheiro cortante.
De repente minhas memórias são interrompidas por vozes arranhadas que invadem a cozinha.
"Não é de agora, vem de m u i t o tempo", diz uma delas.
E continua: "Mãe, cadê sua camisola? A senhora não pode andar sem camisola pela casa."
A mãe: "Não me enche o saco. Era só o que me faltava."
A filha: "A senhora não sabe mais o que faz. Onde colocou minha carteira de cigarros? Eu não aguento mais isso."
O interfone silencia. Sinto-me murcha sobre as pernas pesadas. O cheiro se esvai.
Olho para o copo d'água vazio e penso que o cheiro era de abandono.
A chuva começa e, entorpecida de sono, sou carregada para cama.
sexta-feira, 18 de dezembro de 2009
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3 comentários:
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Sensorial, sinuoso, sinistro, levemente sarcásico... Muito bom!
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Giovani, teus comments são um presente! Ainda falta compartilhar a primeira parte dessa história, q por hora pede a presença da oralidade. Tá ainda em construção. :)
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