“textum, i, m. tecido, passo; contextura (de obra literária)”. [1]
A palavra “texto”, em sua raiz latina “textum”, designa dar um passo e, de ponto em ponto, ir tramando um tecido. O texto é, portanto, o resultado de gestos ritmados que produzem um traçado. Na instalação Tramas Diárias (2010), brinco com movimentos que remetem aos primórdios da escrita e do desenho, sejam eles provenientes da mão da criança arteira, quando faz suas garatujas sobre as diversas superfícies da casa, ou, então, da mão humana paleolítica, ao gravar uma série rítmica de linhas abstratas no Bastão de Ishango. [2]
A linguagem gráfica parece surgir dessa necessidade de aprendizado do gesto através dos movimentos cadenciados pelo corpo. A escrita necessita da mão, dos dedos e dos tendões para se realizar; a fala, da boca, da língua e das cordas vocais. A mesma boca que expele as palavras e os saberes lingüísticos é esta que, quando se cala, deglute e saboreia o alimento. Com ela comemos do bendito fruto da árvore da vida, mas também do fruto maldito da árvore do conhecimento. No terreno da linguagem do Jardim do Éden infantil, já nos primeiros passos da criança, a palavra falada vai sendo por ela lavrada junto com a experimentação do corpinho que desbrava o mundo. Nesse sentido, não há língua-mãe se não houver antes o desenvolvimento das propriedades musculares da própria língua. A criança deve exercitá-la brincando com a fala ainda tomada em seu sentido corporal e desprovida de uma consciência sobre a semântica. O que é o balbucio senão este movimento cíclico da serpente que morde o próprio rabo e também a língua?!
(fotografias de Raul Krebs)
O caminho entre o “saber falar” e o “saber falar bem” passa por experimentar o mundo com o corpo e, posteriormente, discernir com o pensamento o que está dentro e fora dele. Isso implica em compreender os seus limites e aprender o repertório de gestos que constituem a comunicabilidade da linguagem produzida em sociedade. Após a apreensão do juízo moral, a criança diferenciará os gestos “bons” dos “maus”, levando em consideração os contextos em que eles são realizados. Esse aprendizado é construído na interação com o mundo e através da linguagem. Não ocorre diferente com o ato de desenhar ou escrever. Por isso, na adolescência, muitas pessoas param com o exercício do desenho ao julgar serem ruins os seus “bonecos de palito”, aqueles mesmos que, na infância, as divertiam tanto.
Em Tramas Diárias, busco resgatar esse gesto solto da mão ainda meio mole da criança. Uma mão boba que não sabe direito por onde vai, nem o que toca e, por isso, pode até parecer insolente. A instalação é composta por uma pintura em aquarela de 190 x 190 cm, quatro fotografias de 20 x 20 cm que apresentam vistas de topo do processo de trabalho, além de um conjunto de objetos escultóricos de chão – costurados com tecido plush e preenchidos de fibra de silicone [3]. As fotografias registram quatro movimentos de giro do meu corpo com o braço estendido e portando pincel, até fechar um ciclo completo. O gesto circular faz alusão aos modos de contagem do tempo e remete tanto aos calendários primitivos, como aos relógios de parede. Os tubos de tecido emaranhados no chão, por sua vez, espelham a forma de uma mandala (ou seria um ninho?) pintada na horizontal e exposta na vertical. A maciez do toque desses objetos convida o espectador a se sentar sobre eles. Ao acomodar-se, ele passa a experimentar a mesma postura em que o meu corpo estava no momento de elaboração do trabalho, retornando, assim, ao chão.
(Tramas Diárias, 2010. Pintura em aquarela sobre papel colado em tela, 190x190cm;
Mandala de tecido plush e Fotografias digitais por Raul Krebs, 20x20cm cada. Autoria: Lilian Maus. Acervo: Instituto Figueiredo Ferraz, Ribeirão Preto/SP)
Mandala de tecido plush e Fotografias digitais por Raul Krebs, 20x20cm cada. Autoria: Lilian Maus. Acervo: Instituto Figueiredo Ferraz, Ribeirão Preto/SP)
Quando se trabalha com a técnica da aquarela, assim como quando se revela com químicos a fotografia analógica, dizemos que a imagem está “queimada” quando há uma perda de controle da forma por alguma contaminação. No caso da fotografia analógica, isso ocorre quando o filme ou o papel fotográfico são expostos a um excesso de luz; já na aquarela, diz-se que a imagem está queimada quando há aquele efeito de mancha borrada que resulta da contaminação entre duas camadas diferentes de tinta, ao entrarem em contato por acidente ou falha técnica. O “bom aquarelista” deve evitar retrabalhar uma imagem enquanto o papel ainda estiver muito úmido, porque isso comprometerá a precisão dos resultados.
Durante o processo de execução de Tramas Diárias, não busquei atuar com a mão firme e precisa de uma “boa aquarelista” que domina os caminhos da água. Pelo contrário, propositadamente, produzi essas “queimas” entre um traço e outro, formando pontos de contaminação entre as cores da mandala ou desse grande ninho. Os gestos largos foram realizados numa coreografia de círculos concêntricos que seguiram a ordenação de fora para dentro, até que o meu próprio corpo “queimasse” nessas linhas (como ocorre no jogo da amarelinha). A “queima” do corpo com a tinta diluída em água era o limite para eu seguir o preenchimento interno da mandala. O centro vazio, portanto, registra o espaço ocupado pelo meu corpo durante a produção do trabalho. O tamanho atingido pela mandala é o mesmo da minha envergadura.
A aquarela, assim como o desenho, é considerada, muitas vezes, como uma irmã menor da pintura a óleo ou em acrílico, sendo utilizada também como veículo de estudo do artista. O pigmento delicado e bastante diluído, combinado ao suporte mais frágil do papel, acaba reivindicando do colecionador maiores cuidados de conservação com essas obras quando comparadas à pintura sobre tela. Por outro lado, a facilidade de manejo, transporte das tintas e rápida secagem acabou contribuindo para sua popularização, no século XIX, nas mãos de pintores paisagistas como William Turner, Marianne North ou Jean-Baptiste Debret. Ao optar pelo uso da aquarela e pelo suporte de papel em grande formato para a realização do trabalho, faço uma dupla referência à paisagem. A primeira diz respeito à recorrência do uso dessa tinta para sua representação, tanto nos desenhos infantis, como nos artísticos e também nos desenhos científicos botânicos. A segunda, refere-se à paisagem entendida como este “jardim” evocado pelo trabalho a partir do momento em que, em vez de optar por um formato pequeno de papel, faço uso desta grande folha de 2m quadrados, estendida no chão durante o processo, como se ela fosse um tapete oriental. A tradição milenar persa de construção de jardins se reflete diretamente nos desenhos dos tapetes orientais, concebidos como um microcosmos que reveste o espaço interno da casa. [4]
O jardim é apontado, por alguns autores, como “germe” da noção de “paisagem”. Na sua dissertação de mestrado, a artista/pesquisadora Kátia Prates, a partir das leituras de Ernst Gombrich e Malcolm Andrews, fará uma varredura do termo “paisagem” e encontrará suas raízes vinculadas à representação do Jardim do Éden bíblico. Se a natureza neste jardim aparece cercada, posteriormente, ela também será delimitada pelo enquadramento da paysage na pintura francesa. No entanto, se por um lado o termo “paisagem” está vinculado à pintura e, portanto, a um modo de ver a natureza, por outro, também pode significar o próprio “lugar” ou o “meio ambiente”. O termo em inglês “landscape” [5] não faz referência a um olhar, mas, sim, à própria terra “imediatamente adjacente a uma cidade e que é compreendida como pertencente a ela.” [6]
A teórica francesa Anne Cauquelin, no livro A Invenção da Paisagem, busca diferenciar as noções de “paisagem” e de “jardim” sem situar este último apenas como um “gérmen” daquela. A autora localiza o nascimento do termo “paisagem” por volta de 1415, na Holanda, a partir do refinamento das leis da perspectiva. [7] Em razão disso, Cauquelin define que ela é concebida a partir do ponto de fuga na representação pictórica – lugar utópico onde as linhas da perspectiva convergem no horizonte do olhar do observador. Desse modo, a partir dessa noção, o homem estabelece uma relação com o mundo natural mediante a um olhar para “além da linha do horizonte”, que aponta para o “absoluto”. Por outro lado, o jardim seria um lugar habitado, que estabelece um outro tipo de relação do homem com a natureza: trata-se de um espaço de convívio aprazível com o mundo natural, onde os pés pisam a terra e as mãos cultivam flores e hortas com suas técnicas e artifícios.
No capítulo “As formas de uma gênese”, a autora analisará os jardins da Grécia Antiga através da Escola Peripatética de Aristóteles e do Jardim de Epicuro. Esses espaços eram construídos com a finalidade de propiciar o ócio e a meditação. As escolas filosóficas gregas serão construídas junto aos jardins. O próprio termo “academia”, que hoje se refere à universidade, tem sua origem na Academia de Platão, montada sobre os jardins consagrados de Academus, herói ateniense na Guerra de Tróia. Esses jardins eram cultivados como um abrigo das mazelas das cidades-estado, mas, ao mesmo tempo, se distinguiam dos campos abertos, onde a natureza causava terror por causa das intempéries. Nas palavras de Cauquelin: “O jardim oferece, com efeito, esse paradoxo amável de ser 'um fora dentro'.”[8] Em síntese, autora busca diferenciar a noção de “jardim” daquela de “paisagem”, sublinhando que enquanto esta última está atrelada à linha do horizonte e ao conceito de absoluto, o jardim, pelo contrário, é aquele espaço íntimo concebido para o cultivo do conhecimento junto à experiência com a terra.
Na minha produção artística, tanto o trabalho Tramas Diárias, como os desenhos e as pinturas da série a que nomeio Área de Cultivo alegorizam o jardim enquanto lugar sensível (não apenas aprazível), cultivado junto ao chão, a partir do deslocamento do corpo pelo espaço. Nessas obras, o papel assume o lugar da terra, servindo como berço nascedouro da imagem. [9]
(N51, série Área de Cultivo, 2014. Desenho a pastel seco, tinta caligráfica e aquarela sobre papel colado em tela. Dimensões: 200 x 134cm. Lilian Maus.)
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[1] Raulino Bussarello. Dicionário Básico Latino-Português. Florianópolis: Editora da UFSC, 1998,
p.96.
[2] Também conhecido como Osso de Ishango, o objeto arqueológico pertence à coleção do
Instituto Real Belga de Ciências Naturais, em Bruxelas. O osso possui grafismos rítmicos
gravados em sua superfície e, na ponta, tem um quartzo incrustado, talvez usado como
instrumento para gravar ou escrever, além de servir para contagem. Data de, aproximadamente, 20 mil anos a.C.
[3] As estruturas são de montagem bastante trabalhosa, exigindo auxílio de pelo menos outras duas pessoas para socar a fibra dentro dos sacos costurados de tecido. Na própria montagem, portanto, há uma coreografia sincronizada de vários corpos em uma atividade que requer também um vigor físico.
[4] Cf. Michel Foucault. Outros espaços: heterotopias. In: _____. Ditos e escritos – Vol. III. Trad. Inês
A. D. Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 410-416.
[5] Termo derivado do alemão “landshaft”.
[6] Kátia Prates. Paisagens: imagens sob corte. (Mestrado em História, Teoria e Crítica da Arte –
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul),
2004. Orientação: Flávio Gonçalves, p.28
[7] Anne Cauquelin. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes. 2007, p.35
[8] Ibidem, p.63
[9] Ver texto: Flávio Gonçalves. O desenho como área de cultivo. In: Lilian Maus. Onde o desenho
germina. Porto Alegre: Panorama Crítico, 2012. Postado aqui no blog no seguinte link: http://liumaus.blogspot.com.br/2011/07/o-desenho-como-area-de-cultivo-por.html
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