segunda-feira, 1 de março de 2010
Parte I: O menino sem rosto
Com a luz refletida no rosto, ela sentia a pele esbranquiçar sob efeito do sol nascente. Era hora de se levantar.
Tão logo pulou da cama descalça, ela se dirigiu ao banheiro. Após lavar o rosto com água bem fria e suspirar, soprou, com toda força que tinha, o ar para fora de si naquela hora da manhã. Enquanto isso, observava aliviada as gotículas de água escorrerem pelo rosto. Preferiu não secá-lo na toalha. As bochechas molhadas e enrubrecidas faziam assim uma engraçada combinação com a sua camisola vermelha de cetim.
O dia estava iluminado e, diante daqueles interiores do apartamento, ela não necessitava mais de seu passeio diário. Decidiu assim ficar em casa, na companhia do sol. Mas o dia estava virando.
Ao olhar para as paredes, fixando-se na bela textura luminosa que projetava-se sobre a tinta escura, avistou a silhueta negra de um menino sem rosto, como se os fantasmas de sua casa de infância estivessem voltando.
No entanto, sem ver seu rosto, ela não podia dizer que já o conhecia. Naquele instante, sentia-se diante de um estranho. Mas o menino falava com ela, dizia-lhe algo incompreensível. O tom era seco. Ele não sorria. Ela pediu-lhe várias vezes que repetisse, pois era difícil diferenciar suas sílabas. Estaria o menino bravo? Ou ele queria apenas assombrar-lhe? Onde estaria o seu rosto?
"Aproxime-se", disse ela.
Mas o menino relutou dizendo:
"É melhor mantermos a distância".
Foi a primeira frase que ela pôde compreender. Em seguida ela perguntou-lhe:
"Mas por que mantermos distância? Não entendo o que dizes".
Silêncio. O menino disse mais duas ou três frases incompreensíveis, embora o tom fosse reconhecidamente seco. Foi quando ela perguntou a ele:
"Por que tanta secura?"
E o menino retrucou com facilidade:
"Essa secura aprendi aqui".
Ela compreendeu o som das palavras, mas não captava o sentido. Colocou a mão no rosto e ainda podia senti-lo molhado da água fria da torneira. Avistava suas próprias palavras contra o sol e elas pareciam respingar um vapor úmido, junto com a poeira revelada pelo feixe de luz. Ela perguntava-se, em silêncio, desde quando o menino sem rosto a conhecia, o que ela fizera para parecer-lhe tão seca?
"Eu? Seca?", ela perguntou àquele rosto vago.
E ele respondeu:
"És pura instabiliade, um dia estás seca e no outro, acordas molhada."
E assim o menino desapareceu na penumbra. Não havia mais sombra projetada, nem era mais possível regar a conversa. A luz tornava-se difusa, pois o dia estava nublando.
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário