sexta-feira, 30 de junho de 2017

Sobre o trabalho "Flor Azul de Novalis (Centaurea cyanus) a Yemanjá" - Exposição Soçobro, de Lilian Maus

A pintura "Flor Azul de Novalis (Centaurea cyanus) a Yemanjá" é uma espécie de Monumento aos Náufragos de 1947 (Porto Lacustre Osório/Torres), história revisitada pela exposição Soçobro, de minha autoria, realizada a convite de Adriana Boff para o Paço dos Açorianos, em Porto Alegre. 
A ideia do trabalho era ofertar um segmento da flor que foi inspiração para o mito romântico da "busca da flora azul" a cada um dos 20 Náufragos, cujos nomes estão inscritos manualmente nas placas douradas na margem inferior da madeira que serve de suporte à pintura.



Para chegar às formas, pesquisaei duas lâminas científicas da Flor Azul. Uma delas do botânico francês Amédée Masclef (Atlas des plantes de France, 1891). 




A outra é do botânico sueco Carl Lindman (1856-1928), que tem belíssimas litografias e esteve, pra minha surpresa, no Rio Grande do Sul entre 1892-1894 e não pôde, em 1893, seguir suas incursões 
pelas Missões por causa da guerra! (Lindman, "A Vegetação no Rio Grande do Sul", 1974, p.107)

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Viagem ao Interior - texto de Mário Fontanive para exposição "Soçobro", individual de Lilian Maus



Astrolábio
Neste mundo decifrado
navego a
lâmina rasa.

Beijo a boca.
Sigo o gesto.

Busco no meu verso
o mar silenciado.

Recolho os sinais
da cidade
submersa.

Foto: Marina Raymundo da Silva (Arquivo Antônio Stenzel Filho, Osório/RS)





Viagem ao interior
Quando a Lilian iniciou o doutorado, ela resolveu que iria para Osório, seria mais correto dizer que ela resolveu voltar para Osório, cidade onde passou parte da infância. Quis se afastar dos ruídos da cidade, de todos os ruídos, desde os físicos até os simbólicos. Buscava um silêncio, silêncio ou solidão são retiros onde talvez possamos ter uma medida melhor de nossas buscas. No silêncio ouvimos sons que normalmente estão escondidos sob camadas de outros sons, fazemos silêncio para escutar murmúrios, perceber discretos índices normalmente inescrutáveis. O silêncio é talvez um espelho onde podemos mergulhar mais atentos. Como disse o poeta, todo estado da alma é uma paisagem, tudo contém muito se os olhos bem olharem. Os silêncios, os vazios têm potências e o artista pode tornar político o que está escondido, abafado pelo barulho cotidiano.
Em Osório a Lilian teve o encontro com este silêncio próprio da paisagem interior, mas, além disto, encontrou o silêncio de outras paisagens, daquela da infância, da geografia, da natureza e da história. No início desse retorno, ela trabalhou no atelier, mas logo teve o interesse despertado pelo lugar. O artista precisa manter uma certa distância do objeto de sua atenção, não é interessante que sufoque o que está diante dele com concepções preestabelecidas. Deve deixar o objeto falar e, assim, o ambiente foi apresentando várias vozes para ela, ou é possível afirmar: várias vozes desveladas por ela. A arte produzida se mostrou sob muitas faces.

Calmaria na Lagoa do Peixoto ou O dia em que a montanha desapareceu
Uma paisagem pode ser traduzida como a história do desenvolvimento das atenções e das ações de cada um em determinado lugar. É fruto de um aprendizado, e esse aprendizado está vinculado às relações com o lugar e com o tempo. Podemos dizer também que a formação da atenção e da consequente construção das paisagens por nós percebidas está vinculada à memória das nossas ações nos lugares. A Lilian estabeleceu um encontro das ações dela com outros atores, com outras vidas. As paisagens são leituras particulares dessas alteridades derivadas desses encontros.
Um dos encontros da Lilian foi com as histórias do lugar: ruínas, lendas, jornais, filmes, mapas, entre outras coisas que chamaram a atenção da artista e se tornaram objeto de trabalho. As lagoas do litoral norte gaúcho são interligadas por canais, onde é possível navegar de norte a sul de barco. Uma das histórias dessas navegações trata do naufrágio do barco Bento Gonçalves, em 1947. A artista cercou este evento com o levantamento de documentos históricos,  a criação de registros próprios e a reconstituição do trajeto original do barco naufragado que ela realizou juntamente com o pescador José Ricardo, no barco Beija-flor. Em um encontro de passado e presente, com fotos e relatos da época e também o seu próprio registro fotográfico, a artista cria uma narrativa densa sobre o imaginário do lugar. O que significa compreender? Para Hannah Arendt, a compreensão é um processo complexo que, diferentemente do processo científico, nunca gera resultados inequívocos. A compreensão é necessariamente autocompreensão, a verdadeira compreensão sempre retorna aos pressupostos e juízos, modificando aquele que observa. O trabalho da Lilian é mostrar este processo, o processo de tornar uma geografia um lugar, de habitar um lugar. Ela colhe coisas e recolhe suas próprias metamorfoses nos seus trabalhos. Dissolve o conhecido no desconhecido, a imaginação pode dizer respeito à densidade do real apreendida pela constante mudança e variação das narrativas. Esta é a paisagem dos trabalhos da Lilian.

Quando o Minuano interrompeu a travessia do Beija-flor por águas doces

Texto do Prof. Dr. Mário Furtado Fontanive, Depto. Design/UFRGS, para exposição Soçobro, individual de Lilian Maus (fotos ilustrativas compõem a mostra)







quarta-feira, 24 de maio de 2017

SOÇOBRO - exposição individual de Lilian Maus


"Amo o amor dos marinheiros, que beijam e se vão." Pablo Neruda 

Na exposição Soçobro (abertura prevista para o dia 8 de junho de 2017, às 19h, no Paço Municipal Porto Alegre, onde também haverá o lançamento da Coleção de Postais Estudos sobre a Terra, uma parceria da artista com a editora AZULEJO), Lilian Maus cria uma rota de navegação através de imagens de arquivo, pinturas, fotografias e textos. O trabalho foi concebido a partir da travessia lacustre realizada em Osório, a remo de taquara, com o pescador José Ricardo, no seu barco Beija-flor. O trajeto, executado em 2016, foi desenhado com base em pesquisa histórica sobre o maior desastre lacustre do estado, ocorrido na Lagoa da Pinguela, no dia 20 de setembro de 1947. O barco, que leva o nome de Bento Gonçalves, um dos líderes da Revolução Farroupilha, soçobrou justamente no dia em que se comemora, no Rio Grande do Sul, a Revolução. As obras apresentadas são uma homenagem aos 20 náufragos, sendo que destes apenas 2 sobreviveram. Um deles, Arzemiro Viana, era tio de José Ricardo, que refaz o percurso com a artista mesmo sabendo que, em dias de vento minuano, a vastidão de águas doces pode virar mar. 

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Excertos do Diário de bordo da travessia:
Foto: Santos Vidarte (Ricardo João Borges, moço do farol, aponta para o Bento Gonçalves submerso)*

"Eu já estava prevendo que algo ia se dar. Por duas vezes perguntei ao patrão se não estávamos correndo perigo, mas ele me respondeu que não, dizendo: 'Hoje é dia de Bento Gonçalves e nada poderá acontecer a este Bento'. Nisto veio uma rajada de vento e o barco virou. (...) Fui nadando sozinho e quando consegui tomar pé, no junco do Camacho, estava que não aguentava mais nem um minuto. Me deu um tremor de frio e uma falta de ar que eu pensava que ia morrer ali mesmo, como um bicho, sem o socorro de um vivente. Lembrei-me, porém, que estava perto da casa dos Quinca Leandro e fui me arrastando pra lá, como cobra por meio dos taquarais. Durante muito tempo não pude dizer senão que o 'Bento' tinha naufragado e que tinha ficado apenas um homem [Arzemiro Viana] em cima da chaminé". Depoimento de João Clemente Vilar*

"Saímos do porto (...) às 11 passadas. A viagem ocorreu normal, tanto na Lagoa do Marcelino, como na do Peixoto, e no Canal do Caconde. Mas quando entramos na Pinguela, vi que o vento era bravo. (...) Ficaram no barco apenas João Balsani e eu na chaminé. (...) O Neptuno e o João Clemente lutavam com a tábua do toldo, que de vez em quando o vento tomava das mãos deles. Por mais de três horas eles nadaram para terra, enquanto eu gritava e dava tiros com o meu revólver, do alto da chaminé, para dar algum sinal. Devia ser umas três e tantas quando não vi mais o Neptuno, que havia saído só de cueca e camisa branca. Minha esperança era que o João Clemente chegasse em terra e desse algum aviso para me salvarem." Depoimento de Arzemiro Viana*

Foto: Santos Vidarte (A ronda silenciosa e triste dos escaleres)*
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*OSÓRIO - UMA CIDADE ENLUTADA: 18 vidas desapareceram com o "Bento Gonçalves", nas águas da Lagoa da Pinguela.Correio do Povo, Porto Alegre, 23 set. 1947, p.4-16.


Osório, 30 de abril de 2016 - Lilian Maus
Uma semana antes de realizarmos a travessia, o barco Beija-flor desapareceu. Estranhamente ele foi encontrado pelo pescador Marino, amigo do José, à deriva e vazio, próximo ao ponto do naufrágio do Bento Gonçalves. Entendemos, José Ricardo e eu, que ele havia partido antes de nós, talvez pelas mãos de outros aventureiros, de modo a abrir caminho para nossa viagem. Enquanto navegávamos, seguindo o mesmo trajeto do Bento, vim a saber que o José era sobrinho de um dos únicos sobreviventes do naufrágio de 1947.
Nós partimos no dia 30 de abril, às seis horas de uma manhã gelada, das margens da Lagoa do Marcelino, onde funcionava a antiga sede do Porto Lacustre Osório-Torres. Atravessamos a Lagoa do Peixoto e, na entrada do Canal do Caconde, nossa travessia foi interrompida pelo forte vento Minuano, o mesmo que soprava há 69 anos atrás, quando Bento Gonçalves soçobrou nas águas da Lagoa da Pinguela, logo à frente de onde estávamos. Aportamos e amarramos o Beija-flor numa árvore costeira às margens da Lagoa do Peixoto para esperar a força do vento baixar. Mas ele seguiu soprando forte, varrendo as nuvens do céu e modelando carneiros nas águas. À nossa frente, durante a espera, uma roda de gente se formava. Animados, vestindo túnicas brancas, banhavam-se em um ritual religioso na lagoa, ignorando o frio trazido pelo Minuano. Era dia de batismo. Para eles e para nós. Foi uma viagem pelas águas só de ida, voltamos para casa por terra, mas com os pés molhados. Se realizamos algum tipo de pescaria juntos, não foi aquela em que se pesca um espécime para medir seu tamanho e calcular os quilos de carne branca. Saímos à caça de uma espécie de peixe que não pode ser nomeada nem mensurada, porque ela vive apenas nos olhos acurados e famintos dos marrecos e das gaivotas.

sexta-feira, 5 de maio de 2017

Tramas Diárias, 2010 - obra de Lilian Maus no acervo do Instituto Figueiredo Ferraz


textum, i, m. tecido, passo; contextura (de obra literária)”. [1]

A palavra “texto”, em sua raiz latina “textum”, designa dar um passo e, de ponto em ponto, ir tramando um tecido. O texto é, portanto, o resultado de gestos ritmados que produzem um traçado. Na instalação Tramas Diárias (2010), brinco com movimentos que remetem aos primórdios da escrita e do desenho, sejam eles provenientes da mão da criança arteira, quando faz suas garatujas sobre as diversas superfícies da casa, ou, então, da mão humana paleolítica, ao gravar uma série rítmica de linhas abstratas no Bastão de Ishango. [2]

A linguagem gráfica parece surgir dessa necessidade de aprendizado do gesto através dos movimentos cadenciados pelo corpo. A escrita necessita da mão, dos dedos e dos tendões para se realizar; a fala, da boca, da língua e das cordas vocais. A mesma boca que expele as palavras e os saberes lingüísticos é esta que, quando se cala, deglute e saboreia o alimento. Com ela comemos do bendito fruto da árvore da vida, mas também do fruto maldito da árvore do conhecimento. No terreno da linguagem do Jardim do Éden infantil, já nos primeiros passos da criança, a palavra falada vai sendo por ela lavrada junto com a experimentação do corpinho que desbrava o mundo. Nesse sentido, não há língua-mãe se não houver antes o desenvolvimento das propriedades musculares da própria língua. A criança deve exercitá-la brincando com a fala ainda tomada em seu sentido corporal e desprovida de uma consciência sobre a semântica. O que é o balbucio senão este movimento cíclico da serpente que morde o próprio rabo e também a língua?!

 
(fotografias de Raul Krebs)


O caminho entre o “saber falar” e o “saber falar bem” passa por experimentar o mundo com o corpo e, posteriormente, discernir com o pensamento o que está dentro e fora dele. Isso implica em compreender os seus limites e aprender o repertório de gestos que constituem a comunicabilidade da linguagem produzida em sociedade. Após a apreensão do juízo moral, a criança diferenciará os gestos “bons” dos “maus”, levando em consideração os contextos em que eles são realizados. Esse aprendizado é construído na interação com o mundo e através da linguagem. Não ocorre diferente com o ato de desenhar ou escrever. Por isso, na adolescência, muitas pessoas param com o exercício do desenho ao julgar serem ruins os seus “bonecos de palito”, aqueles mesmos que, na infância, as divertiam tanto.

Em Tramas Diárias, busco resgatar esse gesto solto da mão ainda meio mole da criança. Uma mão boba que não sabe direito por onde vai, nem o que toca e, por isso, pode até parecer insolente. A instalação é composta por uma pintura em aquarela de 190 x 190 cm, quatro fotografias de 20 x 20 cm que apresentam vistas de topo do processo de trabalho, além de um conjunto de objetos escultóricos de chão – costurados com tecido plush e preenchidos de fibra de silicone [3]. As fotografias registram quatro movimentos de giro do meu corpo com o braço estendido e portando pincel, até fechar um ciclo completo. O gesto circular faz alusão aos modos de contagem do tempo e remete tanto aos calendários primitivos, como aos relógios de parede. Os tubos de tecido emaranhados no chão, por sua vez, espelham a forma de uma mandala (ou seria um ninho?) pintada na horizontal e exposta na vertical. A maciez do toque desses objetos convida o espectador a se sentar sobre eles. Ao acomodar-se, ele passa a experimentar a mesma postura em que o meu corpo estava no momento de elaboração do trabalho, retornando, assim, ao chão.


(Tramas Diárias, 2010. Pintura em aquarela sobre papel colado em tela, 190x190cm;
Mandala de tecido plush e Fotografias digitais por Raul Krebs, 20x20cm cada. Autoria: Lilian Maus. Acervo: Instituto Figueiredo Ferraz, Ribeirão Preto/SP)


Quando se trabalha com a técnica da aquarela, assim como quando se revela com químicos a fotografia analógica, dizemos que a imagem está “queimada” quando há uma perda de controle da forma por alguma contaminação. No caso da fotografia analógica, isso ocorre quando o filme ou o papel fotográfico são expostos a um excesso de luz; já na aquarela, diz-se que a imagem está queimada quando há aquele efeito de mancha borrada que resulta da contaminação entre duas camadas diferentes de tinta, ao entrarem em contato por acidente ou falha técnica. O “bom aquarelista” deve evitar retrabalhar uma imagem enquanto o papel ainda estiver muito úmido, porque isso comprometerá a precisão dos resultados.

Durante o processo de execução de Tramas Diárias, não busquei atuar com a mão firme e precisa de uma “boa aquarelista” que domina os caminhos da água. Pelo contrário, propositadamente, produzi essas “queimas” entre um traço e outro, formando pontos de contaminação entre as cores da mandala ou desse grande ninho. Os gestos largos foram realizados numa coreografia de círculos concêntricos que seguiram a ordenação de fora para dentro, até que o meu próprio corpo “queimasse” nessas linhas (como ocorre no jogo da amarelinha). A “queima” do corpo com a tinta diluída em água era o limite para eu seguir o preenchimento interno da mandala. O centro vazio, portanto, registra o espaço ocupado pelo meu corpo durante a produção do trabalho. O tamanho atingido pela mandala é o mesmo da minha envergadura.

A aquarela, assim como o desenho, é considerada, muitas vezes, como uma irmã menor da pintura a óleo ou em acrílico, sendo utilizada também como veículo de estudo do artista. O pigmento delicado e bastante diluído, combinado ao suporte mais frágil do papel, acaba reivindicando do colecionador maiores cuidados de conservação com essas obras quando comparadas à pintura sobre tela. Por outro lado, a facilidade de manejo, transporte das tintas e rápida secagem acabou contribuindo para sua popularização, no século XIX, nas mãos de pintores paisagistas como William Turner, Marianne North ou Jean-Baptiste Debret. Ao optar pelo uso da aquarela e pelo suporte de papel em grande formato para a realização do trabalho, faço uma dupla referência à paisagem. A primeira diz respeito à recorrência do uso dessa tinta para sua representação, tanto nos desenhos infantis, como nos artísticos e também nos desenhos científicos botânicos. A segunda, refere-se à paisagem entendida como este “jardim” evocado pelo trabalho a partir do momento em que, em vez de optar por um formato pequeno de papel, faço uso desta grande folha de 2m quadrados, estendida no chão durante o processo, como se ela fosse um tapete oriental. A tradição milenar persa de construção de jardins se reflete diretamente nos desenhos dos tapetes orientais, concebidos como um microcosmos que reveste o espaço interno da casa. [4]


O jardim é apontado, por alguns autores, como “germe” da noção de “paisagem”. Na sua dissertação de mestrado, a artista/pesquisadora Kátia Prates, a partir das leituras de Ernst Gombrich e Malcolm Andrews, fará uma varredura do termo “paisagem” e encontrará suas raízes vinculadas à representação do Jardim do Éden bíblico. Se a natureza neste jardim aparece cercada, posteriormente, ela também será delimitada pelo enquadramento da paysage na pintura francesa. No entanto, se por um lado o termo “paisagem” está vinculado à pintura e, portanto, a um modo de ver a natureza, por outro, também pode significar o próprio “lugar” ou o “meio ambiente”. O termo em inglês “landscape” [5] não faz referência a um olhar, mas, sim, à própria terra “imediatamente adjacente a uma cidade e que é compreendida como pertencente a ela.” [6]

A teórica francesa Anne Cauquelin, no livro A Invenção da Paisagem, busca diferenciar as noções de “paisagem” e de “jardim” sem situar este último apenas como um “gérmen” daquela. A autora localiza o nascimento do termo “paisagem” por volta de 1415, na Holanda, a partir do refinamento das leis da perspectiva. [7] Em razão disso, Cauquelin define que ela é concebida a partir do ponto de fuga na representação pictórica – lugar utópico onde as linhas da perspectiva convergem no horizonte do olhar do observador. Desse modo, a partir dessa noção, o homem estabelece uma relação com o mundo natural mediante a um olhar para “além da linha do horizonte”, que aponta para o “absoluto”. Por outro lado, o jardim seria um lugar habitado, que estabelece um outro tipo de relação do homem com a natureza: trata-se de um espaço de convívio aprazível com o mundo natural, onde os pés pisam a terra e as mãos cultivam flores e hortas com suas técnicas e artifícios.

No capítulo “As formas de uma gênese”, a autora analisará os jardins da Grécia Antiga através da Escola Peripatética de Aristóteles e do Jardim de Epicuro. Esses espaços eram construídos com a finalidade de propiciar o ócio e a meditação. As escolas filosóficas gregas serão construídas junto aos jardins. O próprio termo “academia”, que hoje se refere à universidade, tem sua origem na Academia de Platão, montada sobre os jardins consagrados de Academus, herói ateniense na Guerra de Tróia. Esses jardins eram cultivados como um abrigo das mazelas das cidades-estado, mas, ao mesmo tempo, se distinguiam dos campos abertos, onde a natureza causava terror por causa das intempéries. Nas palavras de Cauquelin: “O jardim oferece, com efeito, esse paradoxo amável de ser 'um fora dentro'.”[8] Em síntese, autora busca diferenciar a noção de “jardim” daquela de “paisagem”, sublinhando que enquanto esta última está atrelada à linha do horizonte e ao conceito de absoluto, o jardim, pelo contrário, é aquele espaço íntimo concebido para o cultivo do conhecimento junto à experiência com a terra.

Na minha produção artística, tanto o trabalho Tramas Diárias, como os desenhos e as pinturas da série a que nomeio Área de Cultivo alegorizam o jardim enquanto lugar sensível (não apenas aprazível), cultivado junto ao chão, a partir do deslocamento do corpo pelo espaço. Nessas obras, o papel assume o lugar da terra, servindo como berço nascedouro da imagem. [9]


(N51, série Área de Cultivo, 2014. Desenho a pastel seco, tinta caligráfica e aquarela sobre papel colado em tela. Dimensões: 200 x 134cm. Lilian Maus.)


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[1] Raulino Bussarello. Dicionário Básico Latino-Português. Florianópolis: Editora da UFSC, 1998,
p.96.

[2] Também conhecido como Osso de Ishango, o objeto arqueológico pertence à coleção do
Instituto Real Belga de Ciências Naturais, em Bruxelas. O osso possui grafismos rítmicos
gravados em sua superfície e, na ponta, tem um quartzo incrustado, talvez usado como
instrumento para gravar ou escrever, além de servir para contagem. Data de, aproximadamente, 20 mil anos a.C.

[3] As estruturas são de montagem bastante trabalhosa, exigindo auxílio de pelo menos outras duas pessoas para socar a fibra dentro dos sacos costurados de tecido. Na própria montagem, portanto, há uma coreografia sincronizada de vários corpos em uma atividade que requer também um vigor físico. 
[4] Cf. Michel Foucault. Outros espaços: heterotopias. In: _____. Ditos e escritos – Vol. III. Trad. Inês
A. D. Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p. 410-416. 

[5] Termo derivado do alemão “landshaft”. 
[6] Kátia Prates. Paisagens: imagens sob corte. (Mestrado em História, Teoria e Crítica da Arte –
Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Universidade Federal do Rio Grande do Sul),
2004. Orientação: Flávio Gonçalves, p.28 

[7] Anne Cauquelin. A invenção da paisagem. São Paulo: Martins Fontes. 2007, p.35
[8] Ibidem, p.63 
[9] Ver texto: Flávio Gonçalves. O desenho como área de cultivo. In: Lilian Maus. Onde o desenho
germina. Porto Alegre: Panorama Crítico, 2012. Postado aqui no blog no seguinte link: http://liumaus.blogspot.com.br/2011/07/o-desenho-como-area-de-cultivo-por.html