quarta-feira, 2 de julho de 2008

A Corda - de Baudelaire para Edouard Manet


"As ilusões, - me dizia meu amigo, - talvez sejam tantas quanto as relações dos homens entre si, ou dos homens com as coisas. E quando a ilusão desaparece, ou seja, quando enxergamos o ser ou o fato tal como existe fora de nós, experimentamos um sentimento estranho, complicado em parte pela falta do fantasma desaparecido, em parte pela surpresa agradável diante da novidade, diante do fato real. Se existe um fenômeno evidente, trivial, sempre igual, e de natureza tal que é impossível se enganar, é o amor materno. É tão difícil supor uma mãe sem amor materno quanto uma luz sem calor; acaso não será perfeitamente legítimo atribuir ao amor materno todas as ações e palavras de uma mãe, em relação ao seu filho? E no entanto, ouça esta pequena história em que fui singularmente mistificado pela ilusão mais natural."

"Minha profissão de pintor me leva a olhar atentamente os rostos, as fisionomias que se oferecem em meu caminho, e você sabe que gozo nos traz esta faculdade que torna aos nossos olhos a vida mais viva e mais significativa que para os outros homens. No bairro afastado em que moro, e em que vastos espaços gramados ainda separam prédios, fre1üentemente observei um menino cuja fisionomia ardente e marota, mais do que todas as outras, me seduziu a princípio. Ele posou mais de uma vez para mim, e eu o transformei ora em pequeno cigano, ora em anjo, ora em Amor mitológico. Eu o fiz usar o violino do andarilho, a Coroa de Espinhos e os Pregos da Paixão e a Tocha de Eros. Enfim, experimentei em toda a graça deste garoto um prazer tão vivo que roguei um dia a seus pais, gente pobre, que consentissem em me cedê-lo, prometendo vesti-lo bem, dar-lhe algum dinheiro e não impor-lhe outra tarefa que não a de limpar meus pincéis e fazer minhas compras. O menino, depois de limpo, tornou-se encantador, e a vida que levava comigo lhe parecia um paraíso comparada àquela vivida no casebre paterno. Apenas devo dizer que o homenzinho por vezes me espantou com singulares crises de tristeza precoce, e que logo manifestou um gosto imoderado pelo açúcar e pelos licores; de modo que um dia em que constatei que apesar de minhas inúmeras advertências ele havia cometido um novo furto desta espécie, ameacei mandá-lo de volta a seus pais. Em seguida saí, e meus negócios me retiveram bastante tempo fora de casa."



"Qual não foi meu horror e meu espanto quando, chegando em casa, o primeiro objeto que atraiu meu olhar foi meu homenzinho, o maroto companheiro de minha vida, enforcado na porta deste armário! Seus pés quase encostavam no assoalho; uma cadeira, que ele sem dúvida empurrara com os pés, estava derrubada a seu lado; sua cabeça estava convulsivamente inclinada sobre um dos seus ombros, seu rosto, entumescido e seus olhos, arregalados com uma fixidez assustadora, primeiro me causaram a ilusão da vida. Desenforcá-lo não era uma tarefa tão fácil quanto você poderia pensar. Ele já estava bastante rijo, e eu sentia uma repugnância inexplicável em deixá-lo bruscamente cair no solo. Era preciso sustê-lo por inteiro com um dos braços e, com a mão do outro braço, cortar a corda. Mas feito isto, não estava tudo pronto; o monstrinho tinha usado um cordão bem fino que tinha penetrado profundamente nas carnes, e era preciso agora com uma tesoura fina, procurar a corda por entre duas dobras de inchação para desembaraçar seu pescoço."

"Omiti de lhe contar que eu tinha vivamente chamado por socorro; mas todos os vizinhos tinham se recusado a vir me ajudar, fiéis neste sentido aos hábitos do homem civilizado, que nunca quer, não sei porquê, se envolver em histórias de enforcado. Enfim veio um médico que declarou que a criança estava morta desde várias horas. Quando, mais tarde, tivemos de despi-la para o sepultamento, a rigidez cadavérica era tal que, desistindo de flexionar seus membros, tivemos de lacerar e cortar suas roupas para tirá-las."

"O comissário a quem tive, naturalmente, que declarar o acidente, me olhou atravessado e disse: 'Isto tudo é meio suspeito', movido, sem dúvida, por um desejo inveterado e por um hábito profissional de assustar, por vias das dúvidas, tanto os inocentes quanto os culpados."

"Faltava cumprir uma tarefa suprema, a qual me causava, só de pensar, uma angústia terrível; era preciso avisar os pais. Meus pés se negavam a me levar. Tive, enfim, esta coragem. Mas, para meu grande espanto, a mãe permaneceu impassível, nenhuma lágrima pingou no canto de seu olho. Atribuí esta estranheza ao próprio horror que devia estar sentindo e lembrei da máxima conhecida: 'As dores mais terríveis são as dores mudas'. Quanto ao pai, contentou-se em dizer, de um jeito meio entorpecido, meio pensativo: 'Afinal, talvez fosse melhor assim, ele, de qualquer forma, teria acabado mal!'."

"Entretanto o corpo estava estendido em meu sofá, e assistido por uma empregada eu tratava dos últimos preparativos, quando a mãe entrou em meu ateliê. Ela queria, dizia, ver o cadáver de seu filho. Eu não podia, na verdade, impedi-la de embriagar-se com sua desgraça e negar-lhe supremo e sombrio consolo. Em seguida ela rogou-me que lhe mostrasse o local em que seu menino tinha se enforcado. 'Oh! não! senhora, - respondi, - isto lhe faria mal'. E, ao voltar involuntariamente meus olhos para o armário funesto, percebi, com um nojo mesclado de horror e raiva, que o prego tinha ficado cravado na madeira, com um comprido pedaço de corda ainda pendurado. Adiantei-me vivamente para arrancar estes últimos vestígios da desgraça, e quando eu ia jogá-los fora pela janela aberta, a pobre mulher agarrou meu braço e disse com voz irresistível: 'Oh! senhor! me deixe isto! eu lhe rogo! eu lhe suplico!' Seu desespero, parecia-me, decerto a perturbara tanto que ela agora se tomava de ternura pelo que havia servido de instrumento para morte de seu filho, e queria guardá-lo como a uma horrível e cara relíquia. - E ela apoderou-se do prego e do cordão."


"Enfim! enfim! tudo estava cumprido. Só me restava voltar ao trabalho, ainda mais vivamente do que de costume, para expulsar pouco a pouco o pequeno cadáver que assombrava as dobras do meu cérebro e cujo fantasma me cansava com com seus grandes olhos fixos. Mas no dia seguinte recebi um pacote de cartas: umas dos inquilinos do meu prédio, algumas outras dos prédios vizinhos; uma do primeiro andar, mas em estilo semibrincalhão, como que tentando disfarçar pesadamente atrevidas e sem ortografia, mas todas tendendo ao mesmo objetivo, ou seja, obter de mim um pedaço da funesta e beatífica corda."

"Entre os signatários havia, devo dizê-lo mais mulheres do que homens, mas nem todos, acredite bem, pertenciam à classe ínfima e vulgar. Guardei aquelas cartas."

"E então, de súbito, uma luz se fez em meu cérebro, e compreendi por que a mãe fazia tanta questão de me arrancar o cordão e através de que comércio tencionava consolar-se."


Baudelaire, Charles Pierre: pequenos poemas em prosa. Florianópolis: ed. da UFSC, 1996. Trad.: Dorothée de
Bruchard, p. 161-67

Um comentário:

James Zortéa disse...

Perversa esta propriedade que confina à ruína.

excelente conto. quando baudelaire acentua uma frase, me faz lembrar o mesmo ritmo dos teus textos.

beijos