terça-feira, 1 de julho de 2008

O mundo cabe em um beco, onde o devaneio é a realidade


Gritos estridentes me despertam numa manhã seca e ensolarada, depois de uma semana inteira de nuvens e umidade gelada. Tento entender que voz é aquela que insiste em explodir enfurecida: "Sai fora daqui, deixa as minhas crianças. Sai daqui desgraçado!". Aproximo-me da sacada e lá está ela no beco, sem megafone. Sua voz ecoa progressivamente por entre os vãos dos prédios vizinhos. Ela está só. Uma mulherzinha gorda, vestida de marinho, saiote prolongado, blazer e bolsa combinando. Os cabelos longos e amarrados identificam-na como crente. Aquela senhora de peitos fartos e movimentação engraçada está de braços abertos e aos berros, a espantar um certo senhor maligno, que parece a perseguir junto às crianças. "Sai fora daqui, desgraçado, pensa que a rua é tua? A rua é pública, eu não vou sair daqui!"

Outras mulheres, como boas donas-de-casa, continuam a passar calmamente com suas sacolas de compras ao lado da mulher enfurecida. Ninguém a vê. As histórias se cruzam, mas isso é imperceptível desde que se entre no beco. Alguma magia envolve os seus passantes. Após adentrar nele, todos tornam-se igualmente indivíduos, apenas isso. Corpos minimamente afastados, mentes infinitamente distantes. A mulherzinha gorda, por sua vez, não vê nenhuma outra mulher. Ela continua a apontar com firmeza e ódio para o senhor invisível, como uma boa mãe a proteger suas crianças.

Um homem de movimentação peculiar ingressa no beco agora vazio. Ele caminha com intervalos constantes, já que apresenta espasmos que o impossibilitam de seguir continuamente. O ritmo descompassado dá forma a uma caminha fragmentada e angustiante, semelhante aos berros estridentes daquela mulherzinha. Eles não se vêem. No meio do caminho, o homem pára voluntariamente. Ele gira em direção ao muro esquerdo que cerca o beco e ali fixa um olhar estranho . Virado para a parede, depara-se com um poste e lê a mensagem de um cartaz colado. Instantes depois, está a caminhar rumo à saída do beco. Dois passos. Um giro de cabeça. Mais três passos. Um giro de cabeça. De pescoço. E de braços. Mais quatro, cinco, seis passos. Ele já está fora do beco.

"Sai fora daqui demônio! Você não vai me pegar não. Eu sei que você está aí."
A senhora de marinho volta a gritar. Seu corpo rígido e frenético está lado a lado com o de um velhinho de bengala que arrasta-se lentamente. Uma das mãos do senhor apóia as costas, enquanto a outra segura firme a bengala. A mulher só tem olhos para o senhor invisível. O velhinho, por sua vez, não tira os olhos da bengala, caminhando com cautela.

Algumas pessoas saem de seus apartamentos e observam a cena da sacada. Uma jovem não se contém e grita enfurecida: "Cala a boca! ... Cala a boca!" A mulherzinha gorda então responde, em tom agudo e firme, já fora do beco, olhando em direção oposta à da moça: "Eles não sabem do que eu sei. Acham que são donos da rua? Pensam que podem mandar em mim? A rua é pública. Eu vejo você. Não estão vendo (apontando para o senhor invisível)? Fora daqui desgraçado! Fora daqui, deixa as minhas crianças!"

Pouco a pouco a voz estridente some e os vizinhos recolhem-se em seus apartamentos. O espetáculo chega ao fim. Aplaudo a cena. É possível voltar ao sonho?

5 comentários:

James Zortéa disse...

Liu, já tinha gostado de ouvir o post, mas agora que eu li, gostei ainda mais. o ritmo das palavras encadeia melhor a compreensão da cena.
beijo

Lilian Maus disse...

Adorei as palavras!
A escrita ganha mais significado com a troca.

Giovani Andreoli disse...

: :

Muito bom!

É o tipo de "crônica do crepúsculo": mundos onírico ou desperto? Não é uma resposta tão óbvia...

E adorei o lay-out! Entendi agora de onde vinha a idéia do James em criar um visual de "bloco de notas". Tenho que visitar mais vezes esta página!

[ : - ) ]
_______

Lilian Maus disse...

Que bom saber que gostaste, Giovani!
O termo "Crónica do crepúsculo" dá o que pensar. É isso mesmo. Sinto-me como o navegador que confere sua posição momentos após o crepúsculo, comparando a abertura esperada em graus com a observada do horizonte.
Quanto ao layout, vinha pensando nele há muito tempo. O James queria algo mais espetacular, com desenhos no fundo também, mas definitivamente gosto dele assim, mais seco. Oniros percorre todos nós.

I disse...

Lilian,
a hora da crepúsculo (citado aí em cima) era chamada de 'a fresta entre os mundos' pelo escritor Carlos Castaneda. Tenho gostado muito dos teus escritos.

beijos
gerson